sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Um contributo para o PS de Francisco Assis


 

Francisco Assis no Público :

‘Realizar um congresso envolvendo a disputa pela liderança a poucos meses de eleições seria um erro político
O PS tem vivido dias agitados. Nada de inusitado. De estranhar seria que tudo fosse pacífico, harmonioso e inquestionável no interior do maior partido da oposição num momento histórico tão complicado como aquele que estamos a atravessar. Só uma organização política em estado de abulia pré-comatosa ofereceria um tal espectáculo de estabilidade moribunda. Não é felizmente o caso.
É porém verdade que dois factores concorrem para a dramatização de acontecimentos desta natureza: por um lado, a aversão ao debate e a demonização do conflito ínsitos à nossa idiossincrasia nacional e no fundo resultantes da perpetuação de uma estrutura mental prédemocrática ainda largamente disseminada na sociedade portuguesa; por outro lado, a sofreguidão que as democracias actuais revelam na busca de respostas simplistas para a complexidade que cada vez mais as atravessa e angustia. Aplicadas à avaliação de um acontecimento político concreto estas duas limitações produzem efeitos demolidores. Os analistas cedem à tentação moralista e os protagonistas sentem-se incentivados à submissão à tirania das emoções.
Como a retórica dominante não prima pela exigência, tudo o que comporta uma dimensão passional tende a transitar do domínio do trágico para o registo da telenovela e tudo o que poderia subsistir de racional corre o risco de desaguar no grande magma de um sentimentalismo omnipresente. Abunda a linguagem da indignação e nenhum estatuto consegue rivalizar com a condição de vítima. O que isto significa enquanto empobrecimento da discussão e degradação da qualidade da decisão é facilmente adivinhável.
De certa forma tudo isto perturbou a discussão ensaiada no seio do PS e prejudica a capacidade de compreensão do ocorrido. É por isso mesmo necessário realizar um esforço adicional para conseguir pensar o PS e o seu momento actual, procurando ir para além da contingência dos factos observados e tentando construir e tratar os problemas que realmente interessam. A minha condição de militante empenhado obrigame à realização pública de um exercício dessa natureza.
Recordemos sucintamente os factos em si. Vários antigos ministros de José Sócrates produziram declarações sucessivas no sentido da reclamação da realização de um congresso partidário antes das eleições autárquicas, o que provocou uma reacção de desconfiança da actual direcção política que vislumbrou aí um ataque organizado tendo em vista a tomada do poder interno; depois de alguma hesitação, o secretáriogeral reagiu, retomando o controlo do tempo político e propondo ele próprio a realização imediata de uma reunião magna em nome de uma necessária clarificação de águas; António Costa respondeu ao desafio admitindo a sua própria candidatura à liderança, se não houvesse uma nítida vontade de António Seguro em proceder ao reforço da unidade interna.
Como sabemos, tudo terminou com sonoros protestos de entendimento que, em princípio, conduzirão à adopção de uma plataforma estratégica comum. Um final aparentemente feliz não dispensa uma reflexão fecunda. Outros a têm promovido. Não posso deixar de dar o meu singelo contributo, que passarei a fazer com a brevidade exigida.
A partir desta minicrise há quatro tópicos que devem ser objecto de devido tratamento e que são os seguintes: a necessidade de consensualização de um modo de debate interno que salvaguarde a supremacia do pluralismo de opiniões; o tema do relacionamento com o passado recente; a questão central da definição de uma linha estratégica coerente e capaz de sustentar uma alternativa política nacional; a definição do princípio da unidade. Procedamos à sua análise caso a caso.
1 – Tópico do pluralismo – O que se passou nos últimos dias foi de molde a suscitar uma séria inquietação em relação a esta matéria. A tentativa de transformar o confronto político numa contraposição puramente moral, enunciada num registo aproximado às categorias emocionais próprias das telenovelas, prejudica o debate e enfraquece o espaço público interno. A direcção do partido tem o direito e o dever de se empenhar na concretização das linhas programáticas constantes da moção que viu aprovada em congresso e, para esse efeito, deve recorrer aos meios que considere indispensáveis, desde o recrutamento do pessoal político percebido como o mais apto até à opção por orientações políticas potencialmente fracturantes.
O que não pode é deixar-se inebriar pela aspiração do aplauso unânime e da adesão incondicional a ponto de passar a ver em cada divergência legítima a expressão de uma dissidência insidiosa. São inaceitáveis afirmações, infelizmente repetidamente proferidas, que procuraram anular a eficácia da crítica pela via da desqualificação ética dos seus autores. Esta confusão entre moral, emoções e política proporciona a instalação de um pântano em que dificilmente se pode estabelecer uma discussão séria entre propostas e visões alternativas. No Partido Socialista, grande partido democrático, portador de uma história densa, não há lugar para um discurso que em nome de uma suposta regeneração ética dê livre curso à mais cínica das demagogias.
2 – Tópico da história recente – É claro que o PS tem um problema com o seu passado imediato. Continuam a defrontarse duas opções igualmente erradas. De um lado os que gostariam de fazer da nostalgia um programa político futuro; do outro os que cultivam a ilusão adâmica de que tudo o que há de bom começou com eles. Uns remetem-se para o papel de adoradores de uma idade de ouro pretérita, os outros só conseguem conceber o que está para trás sob a forma de recalcamento.
É preciso sair desta dicotomia perniciosa. O Partido Socialista tem o dever de elaborar uma reflexão crítica sobre a sua experiência histórica recente, condição imprescindível para uma abordagem livre dos temas do presente e do futuro. Há agora condições excepcionalmente favoráveis para a realização de tal exercício, que deve ser tudo menos dilacerante.
3 – Tópico da clarificação estratégica. Este é o grande debate do futuro que deve concentrar o ideal das energias partidárias. Perante um governo de obediência doutrinária neoliberal e assustadoramente incompetente em diversas áreas, no contexto de uma Europa a atravessar uma profunda crise política e económica e numa altura de reformulação do pensamento inspirador da acção política da esquerda democrática, o Partido Socialista é obrigado a responder a questões difíceis com soluções credíveis e inovadoras. É natural que comecem a estruturar-se correntes de opinião internas animadas por propósitos diversos, nalguns casos antagónicos, em torno de algumas questões de fundo.
Poderá mesmo surgir num horizonte relativamente próximo um confronto entre defensores de um frentismo de esquerda e adeptos de um entendimento preferencial com um centro-direita imune à tentação neoliberal. O partido tem de estar preparado para acolher estas discussões e promover a realização de escolhas dolorosas sem risco de qualquer cisão grave. Nesta perspectiva, considero, como já várias vezes escrevi, que António José Seguro tem agido com sensatez e ponderação, colocando a agenda europeia no centro do debate nacional e evitando a cedência a pulsões demagógicas geradoras de fáceis efeitos mediáticos mas claramente contraproducentes no domínio dos resultados.
4 – Tópico da unidade – A unidade não pode constituir um fim em si mesmo, nem deve ser perspectivada como uma utópica tentativa de alcançar uma total identidade de pontos de vista na acção concreta. Só faz sentido quando entendida no plano igual dos princípios e enquanto garante de igual dignidade na participação de cada militante na vida partidária.
5 – Nota final – A realização de um congresso envolvendo a disputa pela liderança a poucos meses das eleições autárquicas teria constituído um dramático erro político. Há um tempo próprio para tudo.

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